CÂNCER CERVICAL, HPV E ESTRATÉGIAS DE RASTREAMENTO: UM PANORAMA ATUALIZADO
Publicado em: 01/04/2025, 16:28

O câncer do colo do útero permanece um desafio premente de saúde pública, apesar dos avanços notáveis na prevenção, na detecção precoce e no tratamento. A descoberta da forte associação entre o HPV e o câncer cervical impulsionou a adoção de novas tecnologias e métodos de rastreamento – desde a citologia convencional e em meio líquido até a realização de métodos moleculares para identificação do HPV junto a abordagens e estratégias inovadoras como a autocoleta e o uso de ferramentas de escrutínio suportado por plataformas digitais que utilizam algoritmos de inteligência artificial. Tais variáveis tornam necessária a revisão de condutas frente a novas possibilidades.
Nas últimas décadas, o entendimento a respeito dos mecanismos oncogênicos e da etiologia do câncer cervical revolucionou as estratégias de prevenção, rastreamento e diagnóstico. Com a constatação de que, em via de regra, os cânceres cervicais estão relacionados à infecção pelo HPV, passaram a ser implementados métodos de rastreamento que possibilitam a identificação precoce de lesões precursoras, reduzindo significativamente a mortalidade.
Assim, apesar dos desafios inerentes à heterogeneidade dos subtipos de HPV e dos raros casos de tumores HPV-negativos (que apresentam características clínicas e moleculares peculiares), o que a literatura preconiza em termos de manejo e predição de risco está intimamente relacionado aos adventos tecnológicos que identificam fatores preditores de maior risco de evolução para o câncer invasivo.
Frente à heterogeneidade de realidades entre países ao redor do mundo, soma-se ao panorama a ser contemplado para encontrar a melhor estratégia para dada situação a necessidade de adaptar as diretrizes de rastreamento para contextos populacionais variados, levando em consideração não apenas os métodos disponíveis, mas também a percepção sociodemográfica e cultural da população em questão.
Fomentar um cenário eficaz e assertivo, que amplie a cobertura tanto vacinal quanto de rastreamento, é essencial para o sucesso de qualquer programa de combate ao câncer cervical.
Avanços no Rastreamento: Citologia, Testes Moleculares e Coteste
O exame de Papanicolau foi a pedra angular do rastreamento cervical por décadas, mas apresenta limitações, em grande parte inerentes à sua sensibilidade e à variabilidade interpretativa.
A transição para a citologia em meio líquido, ainda que tenha trazido potenciais benefícios significativos, como a melhor distribuição das células na lâmina, a redução de contaminantes (muco, hemácias e exsudatos inflamatórios) e a possibilidade de reutilização dos resíduos para testes moleculares – especialmente a detecção do DNA do HPV –, não foi capaz de alterar a sensibilidade do exame de forma tão impactante, sendo que é na chance de utilizarmos o mesmo material biológico colhido para a confecção de lâminas para testes de HPV que reside a grande transformação em termos de sensibilidade do rastreamento.
Ocorre que, por identificar infecção ainda que não exista qualquer lesão já instalada na paciente, temos um grande incremento de sensibilidade, sob pena de menor especificidade quando tomamos como critério a positividade do teste para HPV de alto risco frente ao risco de lesão precursora de alto grau (ou câncer invasor) vigente.
Para contemplar ambos os cenários há alguns estudos sobre a combinação entre citologia em meio líquido e o teste de HPV, o chamado coteste.
O coteste passou a ser reconhecido internacionalmente, atingindo sensibilidade que se aproxima a 100% para a identificação de infecções por HPV de alto risco e a detecção precoce de lesões pré-cancerígenas com menor perda de especificidade final. Obviamente, o custo mais elevado e a necessidade de infraestrutura laboratorial permanecem desafiadores e são fatores que devem ser considerados caso a caso para que pensemos em tal estratégia.
HPV, Vacinação e Impacto na Epidemiologia
Os tipos oncogênicos de HPV, especialmente o 16 e o 18, são responsáveis por cerca de 70% dos casos de câncer cervical. A vacinação contra o HPV, direcionada a adolescentes e jovens adultos, tem se mostrado uma estratégia eficaz na redução da incidência de infecções persistentes e, consequentemente, de lesões precursoras.
Ainda, o aumento da cobertura vacinal deve modificar de modo relevante a dinâmica dos benefícios do rastreamento, com possíveis novas tratativas relativas ao modo como os testes se comportarão quando realizados em uma população vacinada.
Devemos ter em mente que casos que fujam ao da proteção da vacina precisam continuar a ser identificados e compreendidos, bem como minimizar iniciativas que possam gerar eventuais intervenções desnecessárias (que podem superar os benefícios caso não sejam propriamente endereçadas), havendo assim um amplo espaço para entendimento e debate da necessidade de adaptar as diretrizes de rastreamento para oferecer abordagens diferenciadas baseadas no status vacinal, por exemplo.
HPV-Negativo e Desafios Diagnósticos
Embora a grande maioria dos cânceres cervicais seja atribuída à infecção pelo HPV, uma fração – estimada entre 5% a 7% para carcinomas de células escamosas e ainda maior para adenocarcinomas – permanece HPV-negativa. Estudos que empregam técnicas moleculares avançadas em amostras líquidas e em blocos de tecido revelam que esses casos apresentam variações na carga viral e marcadores moleculares distintos, o que desafia a acurácia dos métodos de detecção atualmente disponíveis. Dessa forma, a manutenção da citologia como ferramenta complementar, aliada à melhoria contínua dos métodos moleculares, pode representar uma maneira preciosa de reduzir os falsos-negativos e otimizar o rastreamento, especialmente em programas baseados exclusivamente em HPV. Novamente, questões como custo e eficácia precisam ser consideradas.
Inovação e Acesso: Autoexame e Plataformas Digitais
Visando ampliar a adesão ao rastreamento, novas estratégias têm sido implementadas, com destaque a instrumentos destinados à autocoleta, que permitem que a coleta da amostra seja feita de forma mais privativa, domiciliar e também muito efetiva.
Estudos realizados em regiões com baixa cobertura de rastreamento demonstram que a oferta de tais kits, enviados por correio ou demais desenhos logísticos, pode atingir taxas de completude superiores a 70% com maior efetividade, além de melhorar a aceitação e o seguimento dos casos positivos.
Essa abordagem não só empodera as mulheres ao oferecer privacidade e conveniência, mas também reduz barreiras geográficas e socioeconômicas, contribuindo para a equidade no acesso aos serviços de saúde.
Metas Globais e Perspectivas Futuras
A estratégia global para a eliminação do câncer cervical, conforme proposta pela Organização Mundial da Saúde (OMS), estabelece as metas 90-70-90: 90% de cobertura vacinal contra o HPV, 70% de rastreamento com testes de alta sensibilidade e realizados com qualidade assegurada e 90% de acesso ao tratamento adequado para os casos detectados.
Alinhadas a essas diretrizes, as inovações no rastreamento configuram um cenário promissor para a necessária redução substancial da incidência e mortalidade do câncer cervical.
A conjugação de esforços em vacinação, educação em saúde e melhoria do acesso aos serviços diagnósticos é imperativa para transformar as práticas atuais e avançar rumo à eliminação do câncer cervical como problema de saúde pública.
O Impacto do Câncer Cervical no Brasil e os Desafios no Tratamento
No contexto brasileiro, o câncer cervical é o terceiro tumor maligno mais comum entre as mulheres e a quarta causa de morte por câncer.
Com uma incidência de aproximadamente 15,43 casos por 100 mil mulheres por ano, a detecção tardia é um dos maiores desafios, já que cerca de 70% das mulheres são diagnosticadas em estágios avançados, quando as opções terapêuticas são mais limitadas.
A infraestrutura de saúde – especialmente a disponibilidade de equipamentos de radioterapia no Sistema Único de Saúde (SUS) – é insuficiente, contribuindo para altos índices de mortalidade, principalmente em regiões menos desenvolvidas.
Dados apontam que quase 90% das mortes ocorrem em áreas com menor desenvolvimento, onde a falta de acesso aos exames preventivos e ao tratamento adequado agrava a situação. Por exemplo, no estado do Amazonas, antes da pandemia, registrava-se uma média de 25 a 30 óbitos mensais por câncer cervical, sendo que a interrupção dos tratamentos durante a pandemia intensificou ainda mais essa realidade.
Considerações finais
A luta contra o câncer cervical exige uma abordagem multifacetada que combine avanços tecnológicos, estratégias inovadoras de rastreamento e políticas públicas robustas e equitativas.
O uso de métodos aprimorados – como a citologia em meio líquido, o coteste e os sistemas de autocoleta, bem como de ferramentas de inteligência artificial que otimizem o citoescrutínio –, aliado à ampliação da vacinação contra o HPV e ao cumprimento das metas 90-70-90, representa o caminho para reduzir significativamente a incidência e a mortalidade da doença.
A integração desses esforços parece ser essencial para transformar o panorama da saúde feminina, garantindo que cada mulher tenha acesso a um diagnóstico precoce e a um tratamento adequado, independentemente de sua condição socioeconômica ou geográfica.
O cenário mundial exibe inequidades que precisam ser dirimidas e claramente isso se faz possível através da seriedade ao colocarmos na balança diferentes considerações a respeito de qual estratégia tem maior sentido e ao gerenciarmos o modo como o diagnóstico – seja qual for o(s) método(s) de escolha – é realizado.