Patologia Fetoplacentária: a análise que pode mudar o manejo clínico de futuras gestações
Publicado em: 28/04/2025, 11:25

Por ser o principal elo entre mãe e feto, a placenta exerce funções essenciais ao desenvolvimento humano desde os primeiros estágios da gestação. Além de atuar como órgão de transporte, garantindo o fornecimento de oxigênio, nutrientes e a remoção de resíduos metabólicos fetais, ela também participa ativamente da modulação imunológica materno-fetal.
Dada sua complexidade funcional e adaptabilidade ao ambiente gestacional, a placenta não apenas acompanha, mas também responde dinamicamente às condições clínicas da gestante. Alterações morfológicas observadas ao microscópio podem refletir distúrbios metabólicos, infecciosos, vasculares ou imunológicos e muitas vezes ajudam a esclarecer desfechos gestacionais adversos, especialmente quando os exames clínicos e laboratoriais não oferecem respostas conclusivas. Ao escutarmos o que a placenta tem a nos dizer, abrimos caminhos mais seguros e personalizados para o cuidado obstétrico e reprodutivo.
Assim, convidamos você a refletir conosco sobre algumas questões-chave que frequentemente surgem na prática obstétrica e que podem encontrar respostas (ou pistas) no exame anatomopatológico placentário.
1. Aplicabilidade da patologia fetoplacentária: Que informações um exame anatomopatológico fornece ao ginecologista/obstetra?
Quando examinamos a placenta ao microscópio, conseguimos reunir informações que ajudam a esclarecer:
O que pode ter contribuído para um desfecho gestacional adverso?
Infecções (como corioamnionite ou vilosite crônica), eventos isquêmicos, lesões hemorrágicas ou alterações na maturação placentária são exemplos de achados que podem ser identificados com precisão ao exame histológico. Esses dados ajudam a compreender situações como parto prematuro, sofrimento fetal, restrição de crescimento intrauterino ou complicações perinatais inesperadas.
Havia alguma doença materna influenciando o desfecho?
Muitas vezes, a placenta carrega evidências sutis (ou nem tão sutis) de doenças maternas que impactaram o curso da gestação. Condições como pré-eclâmpsia, trombofilias e distúrbios metabólicos, como o diabetes gestacional, costumam se refletir na arquitetura placentária. Nesses casos, podem ser observados padrões histológicos compatíveis com adaptações vasculares, como corangiose e corangiomatose, que refletem tentativas compensatórias de garantir suprimento adequado ao feto em ambientes de estresse metabólico ou hipóxia crônica.
A placenta conseguiu se desenvolver normalmente?
Por ser um órgão transitório e altamente adaptável, a placenta acompanha o ritmo da gestação e busca responder, da melhor forma possível, aos desafios impostos pelo ambiente intrauterino. Alterações em seu processo de maturação podem fornecer pistas valiosas sobre condições adversas ocorridas ao longo da gravidez. Por exemplo, sinais de maturação acelerada costumam sugerir exposição prolongada a ambientes hipóxicos. Já a presença de hipoplasia vilosa distal indica um desenvolvimento incompleto dos vilos terminais, o que compromete a eficiência das trocas gasosas e nutricionais com o feto.
No entanto, é fundamental lembrar: sem a informação da idade gestacional, avaliar o peso e a maturação placentária de forma adequada se torna praticamente inviável. O aspecto morfológico do tecido placentário muda significativamente ao longo da gravidez — e só pode ser interpretado corretamente quando relacionado ao tempo gestacional.
E nas próximas gestações, como prevenir novos riscos?
Alguns achados histopatológicos podem levantar suspeitas sobre condições maternas predisponentes — como trombofilias hereditárias, síndrome antifosfolípide ou infecções persistentes — que nem sempre são clinicamente evidentes no momento da perda. Quando reconhecidas precocemente, essas alterações abrem espaço para investigações direcionadas e intervenções específicas já no pré-natal seguinte, contribuindo para a redução de riscos em futuras gestações.
2. Natimortos e abortos de repetição: Essa análise pode mudar o manejo clínico de futuras gestações?
Em casos de natimortos e perdas gestacionais recorrentes, a histopatologia da placenta se torna uma aliada indispensável. Embora nem sempre seja conclusiva, ela pode oferecer pistas que ajudam a guiar a investigação e prevenir novos desfechos adversos.
Quais contribuições a análise pode trazer?
Identificar infecções subdiagnosticadas: Achados como corioamnionite, vilosite crônica e sinais de infecção viral (como citomegalovírus ou parvovírus B19) ajudam a indicar tratamentos preventivos em futuras gestações.
Levantar suspeitas de alterações cromossômicas: Certos padrões histológicos podem sugerir a presença de aneuploidias ou outras alterações genéticas, especialmente em casos de natimortos ou perdas gestacionais recorrentes. Embora esses achados não sejam, por si só, diagnósticos, sua presença — associada ao contexto clínico, à história obstétrica e a exames prévios como ultrassonografia — pode justificar a indicação de análises genéticas complementares, como cariótipo ou sequenciamento genético. Entre os padrões mais sugestivos estão: atrofia vilosa com hipercelularidade estromal, atraso na maturação vilosa, hipertrofia do trofoblasto, vilos hidrópicos localizados e calcificações precoces e difusas.
Detectar fatores maternos predisponentes: Como trombofilias hereditárias, síndrome antifosfolípide, condições autoimunes ou distúrbios metabólicos, que podem ser manejados no pré-natal seguinte com intervenções direcionadas.
3. Casos desafiadores: Quando a histologia oferece respostas onde os outros exames silenciam
Achados como a intervilosite crônica, por exemplo, podem sugerir rejeição imunológica materna ou estar associados a doenças autoimunes, como o lúpus eritematoso sistêmico. Já a identificação de infecções subclínicas, como toxoplasmose e citomegalovírus, muitas vezes só é possível por meio da análise histológica detalhada, mesmo na ausência de manifestações clínicas evidentes.
Vale lembrar que, em casos desafiadores como esses, a qualidade do informe clínico que acompanha a peça placentária pode ser decisiva. A placenta é um órgão de grande variabilidade celular, e reconhecer padrões como inclusões virais, por exemplo, nem sempre é uma tarefa simples ao microscópio. Quanto mais contextualizado for o pedido — incluindo informações sobre sintomas maternos, sorologias, achados de imagem ou intercorrências gestacionais —, maior a chance de o laudo trazer respostas verdadeiramente úteis.
4. Patologia fetoplacentária na era do diagnóstico personalizado: Testes moleculares e imuno-histoquímica podem auxiliar no diagnóstico de condições específicas?
O avanço das técnicas moleculares e imuno-histoquímicas transformou a prática da patologia fetoplacentária, possibilitando diagnósticos mais precisos. Esses recursos não substituem a avaliação morfológica — mas a complementam com grande poder de precisão, especialmente em casos em que o diagnóstico depende de achados mais sutis.
A imuno-histoquímica, por exemplo, permite confirmar infecções específicas, como o citomegalovírus, ou investigar marcadores relacionados a doenças autoimunes e distúrbios metabólicos.
Já o Sequenciamento de Nova Geração (NGS) tem sido uma ferramenta poderosa na investigação de mutações genéticas raras associadas a desfechos adversos. Condições hereditárias como a Síndrome de Marfan (relacionada ao gene FBN1) podem ser diagnosticadas com precisão. Além disso, mutações em genes como BRCA1 e BRCA2 — embora mais associadas à oncologia — também podem emergir como achados relevantes em alguns contextos obstétricos familiares.
Mais do que expandir o escopo diagnóstico, essas técnicas aproximam a patologia da medicina personalizada, permitindo aconselhamento genético mais preciso e estratégias de prevenção mais ajustadas ao perfil da paciente.
5. Interpretação clínica dos laudos: Como traduzir achados histopatológicos em decisões práticas no cuidado obstétrico?
Laudos anatomopatológicos podem parecer complexos à primeira leitura — especialmente quando envolvem termos técnicos ou achados menos familiares. No entanto, algumas estratégias simples podem ser adotadas:
Dê atenção especial à conclusão do laudo: A seção de “Notas” costuma sintetizar os achados mais relevantes, relacionando-os (quando possível) ao quadro clínico. Vale lembrar que essa etapa só é plenamente interpretável quando acompanhada de um bom informe clínico e da descrição do desfecho gestacional.
Exemplo prático: a presença de infartos placentários pode ser esperada em gestações a termo; no entanto, quando ocorrem antes de 34 semanas, podem indicar hipóxia crônica decorrente de disfunção na perfusão materna.
Inclua o patologista nas discussões clínicas e mantenha o diálogo aberto: Casos complexos ganham clareza quando são debatidos em conjunto. Compartilhar o contexto gestacional, discutir a relevância dos achados histológicos e alinhar condutas com diferentes especialidades amplia o potencial diagnóstico da análise placentária. Esses encontros fortalecem o vínculo entre as equipes e tornam o exame anatomopatológico uma ferramenta ainda mais valiosa no cuidado obstétrico.
Aqui no DB Molecular, acreditamos que o laudo é só o começo da conversa. Estamos disponíveis para discutir casos, tirar dúvidas e contribuir com o cuidado das suas pacientes — sempre que você precisar.
6. Existe padronização para a análise fetoplacentária?
A patologia placentária conta hoje com diretrizes reconhecidas internacionalmente, que ajudam a padronizar descrições, diagnósticos e interpretações morfológicas. Esses documentos são essenciais para garantir que os laudos sejam consistentes, clínicos e comparáveis entre diferentes serviços. Entre os principais consensos, destacam-se:
- Amsterdam Placental Workshop Group Consensus Statement (Consenso de Amsterdam): Referência mundial na análise de placentas em casos de restrição de crescimento fetal e natimortos. (Esse é o protocolo seguido rotineiramente aqui no DB.)
- American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG): Oferece recomendações sobre a investigação de perdas gestacionais, com ênfase na integração entre histopatologia e dados clínicos.
- Royal College of Pathologists (RCPath): Apresenta um guia prático e detalhado para o exame anatomopatológico de placentas em contextos de desfecho gestacional adverso.
7. Perspectivas futuras e o conceito de Programação Fetal Mensagem final - Dra. Bibiana.
A placenta sempre me fascinou. Ela é, ao mesmo tempo, o registro silencioso da gestação e uma espécie de oráculo biológico — capaz de dizer muito sobre o que passou, mas também de sugerir o que ainda está por vir.
Você está familiarizado com o conceito de programação fetal?
Essa ideia — hoje amplamente estudada — propõe que o ambiente intrauterino, incluindo fatores como o estado nutricional, imunológico e vascular da mãe, pode influenciar de forma profunda e duradoura a saúde da criança, inclusive na vida adulta, por meio de mecanismos compensatórios e alterações epigenéticas. Alterações morfológicas macroscópicas e histopatológicas placentárias observadas no pós-parto já foram associadas a condições como resistência à insulina, autismo, hipertensão, doenças cardiovasculares, obesidade e até câncer colorretal e de pulmão.
Em outras palavras, a placenta não apenas reflete o histórico gestacional ou o que está acontecendo no presente — ela também pode antecipar riscos e ajudar a entender o que virá pela frente.
Por isso, estudar a placenta é olhar para o futuro. Documentá-la, mesmo quando não há suspeita clínica imediata, é uma forma de cuidar preventivamente — da mãe, da criança e da própria prática obstétrica.
Pensando nisso, elaborei um protocolo de fotografia padronizada de placentas na sala de parto, com o objetivo de orientar profissionais de saúde na documentação da peça logo após o nascimento. Esse registro pode funcionar como apoio à decisão clínica, base documental em contextos clínicos e legais e, futuramente, como entrada para ferramentas de inteligência artificial capazes de auxiliar na triagem de casos que necessitem da realização do exame anatomopatológico.
Caso deseje incorporar registros fotográficos à sua prática clínica, disponibilizo o protocolo desenvolvido para aplicação direta no ambiente da sala de parto, com potencial de integração a rotinas assistenciais e projetos de inovação tecnológica.
Acesse também um conteúdo completo sobre o tema na UniDB!
Acesso ao documento:
https://www.researchgate.net/publication/388499446_PLACENTA_IMAGE_CAPTURE_PR OTOCOL_IN_THE_DELIVERY_ROOM
Bibiana Quatrin Tiellet da Silva, MD, MSc. Médica Patologista, Mestra em Ciências da Saúde (Ginecologia e Obstetrícia) Doutoranda em Inteligência Computacional - PPGCC Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil bibianatiellet@gmail.com bibiana.tiellet@posgrad.ufsc.br
Referências
1. Amsterdam Placental Workshop Group Consensus Statement (Consenso de Amsterdam): Consensus statement on the pathology of fetal growth restriction in stillbirth Source: American Journal of Obstetrics and Gynecology, 2016 Authors: Khong TY, Mooney EE, Ariel I, et al. Link: https://doi.org/10.1016/j.ajog.2016.03.041
2. Royal College of Pathologists (RCPath): Guidelines on the examination of the placenta Source: The Royal College of Pathologists, United Kingdom Link: https://www.rcpath.org
3. American College of Obstetricians and Gynecologists (ACOG): Management of Stillbirth (ACOG Practice Bulletin No. 102) Publication: Obstetrics & Gynecology, 2009 Update: Consulte as atualizações mais recentes diretamente no site da ACOG. Link: https://www.acog.org
4. Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO): Manual de Perdas Gestacionais e Natimortos Source: FEBRASGO, Brasil Focus: Recomendações para o manejo clínico e a solicitação de exames complementares, incluindo análise placentária. Link: https://www.febrasgo.org.br 5. Longtine, M. S., & Nelson, D. M. (2011). Placental dysfunction and fetal programming: the importance of placental size, shape, histopathology, and molecular composition. Seminars in reproductive medicine, 29(3), 187–196. https://doi.org/10.1055/s-0031-1275515